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Channel: 2016 – CinemaXunga

Hail, Caesar! (2016)

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Tenho um amigo de infância que bifurcou ali no início da vida adulta para uma religião que fez dele um gajo um bocado demente. Continuou o mesmo, mas as doutrinas religiosas carregaram-no de culpa e de falta de auto-estima. O gajo bebia uns copos, fumava um fininho ou via uma jeitosa de bela padiola que lhe causava tesão e ficava todo complexado. Tinha falhado em relação aos seus votos. Um homem de religião que abominava a ciência, que seria o nosso fim. Coisas que dizia mas que não devia acreditar. Ora, um dia arranjou uma namorada. Eram um casal normal. Fodiam contra as regras da igreja e ele foi-se habituando ao peso do pecado. Apanhei-o na praia com ela. A gaja não era má, mas saiam-lhe pintelhos pelo lado das cuecas do bikini. Falei-lhe nisso e ele respondeu-me que ela tinha uma anatomia vaginal muito complexa, que não havia maneira de lhe aprumar o arame farpado sem lhe arrancar uma febra conal. Calei-me, porque um homem não comenta abertamente a febra conal da namorada do amigo. Largos meses depois voltei a cruzar-me com ele e pareceu-me diferente. No decorrer de um daqueles quentes momentos de meter a conversa em dia revelou-se a favor da ciência e da tecnologia, que havia coisas que o andavam a cegar. Que tinha decidido ser menos radical. A namorada teria ido a uma daquelas depiladores laser que lhe rapou a cona toda, estilo menina de 8 anos, e o gajo até chorou nessa noite. Um milagre da ciência que o fez ver a luz, neste caso uma luz pulsada muito concentrada sob a forma de laser inteligente que arranca pintelhos.

E é a luz que se vê neste regresso dos irmãos Coen, a luz a 24 impulsos por segundo projectados num ecrâ branco. O cinema é a religião e o filme é uma viagem de fé, a teste de fé que o personagem interpretado por Josh Brolin terá que fazer para provar o seu amor pela sétima arte.

Hail Caeser não é bem uma história, não tem um arco narrativo convencional. É uma viagem, uma carta de amor dos Coens a um tempo que vive nas nossas memórias colectivas. Um tempo glamoroso e opulento, distorcido pela influência da cultura popular nos parcos fragmentos que possam representar qualquer coisa de facto histórico. É também uma comédia, um humor muito especial que vem sendo cozinhado e apurado há largos anos por estes Chefs do celulóide.

Porque é de celulóide que se trata, não de digital. E que bonito filme este, a fazer justiça aos tempos do technicolor, aos tempos do overkill estético, das cores primárias que feriam os olhos de tanta intensidade. Set após set, o nosso herói revisita referências reconhecíveis para nos mostrar aquilo que seria um ambiente de estúdio.

Ora, o fio condutor desta visita de estudo aos tempos áureos dos grandes estúdios é Eddie Mannix (Brolin), um homem que se ocupa de resolver problemas para garantir que as produções cheguem a bom porto. Católico praticante, Mannix vai passar 24 horas neste filme a ser testado na sua fé. Não na fé católica, da qual nunca descarrila, mas na fé na industria do cinema. Um tentador satanás da indústria da aviação tenta captar o seu talento para outros vôos, com proposta melhor em tudo. Mais tempo com a família, mais dinheiro, reforma antecipada, ambientes calmos e relaxantes. Esse satanás da aviação fala-lhe da falta de alma que tem o cinema, que é uma actividade comercial obscena e vetada à extinção.

Com estas decisões a pender por cima da sua cabeça como um cofre do Will E. Coyote sobre o Roadrunner, Mannix resolve dezenas de problemas, imerso num infinito caos. E no fim decide e o amor, como sempre, sai vencedor.

Não diria tratar-se do melhor filme dos Coen, mas é bem decente e acima do lixo que nos despejam semanalmente nas salas. Tecnicamente irrepreensível e com aqueles timings sempre afiados destes manos.

De notar uma impressionante galeria de actores que representam quadros ligeiramente bidimensionais do grande esquemas dos estúdios e do grande Dolph Lundgren que tinha um belo papel mas foi cortado. Só aparece a sua nobre silhueta.

E no final temos a lição de todas as lições que devemos tirar em cinema, sob a forma de um ensaio de bofetão dado a George Clooney, que apenas o cinema é a dádiva da luz não é a política, nem as fofocas, nem o star system, nem o box office, nem o cgi, nem o mercantilismo dos remakes, nem confortável vaca dourada dos universos cinemáticos, nem as artimanhas manhosas do 3D/4D, nem as pipocas, nem a publicidade da Pepsi, nem o caralho do gajo que atende a chamada e tenta convencer a namorada que está em casa a estudar e por isso é que não pode estar com ela. “Film is truth 24 times a second, and every cut is a lie.”


Batman v Superman: Dawn of Justice (2016)

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Fez agora 3 anos que escrevi um texto entitulado “Porque deixei de ver filmes de super-heróis“ em que expliquei a razão que me levaria, à altura, abandonar o género blockbuster de heróis de borracha negra e licra nadega adentro. A razão principal, para que não tem paciência para chafurdar na minha psicanálise, era o facto indiscutível de que eu não me enquadrar no público alvo. “Não és tu, sou eu!”. Acontece que o destino haveria de se encarregar de me chutar os tomates poucos dias depois, quando o meu filho me pediu para ver os Avengers. Mais que isso, queria que lhe explicasse toda a história que está para trás, uma vez que uma criança de 5 anos não tem tempo para backstories. Quando o miúdo recuperou a consciência das duas bofetadas que lhe administrei em fúria não justificada e perfeitamente gratuita, lá comecei calmamente a explicar-lhe o pouco que sabia. Postura confiante, voz firme e o cérebro sob efeito de um blister inteiro de calmantes. Bem sei, não se faz e será a minha sina passar a fase vegetal da minha terceira idade num lar a cheirar a urina e solidão.

O tempo passa e estamos em 2016. Recusei ir com ele ver o Batman V Superman ao cinema por birra. O raio do miúdo não quis acompanhar o seu pai ao Star Wars porque não gosta. Nunca se dignou a ver mais de 2 minutos de um filme e não gosta, pfff… O que mais me chateia nisto é que agora nunca lhe poderei dizer que o Force Awakens é uma merda, porque terei sempre que fingir que fui sozinho com muito orgulho e ele nem sabe o que perdeu. À semelhança dos pais que fumam às escondidas dos filhos, também terei que passar uma vida de negação a fingir que Star Wars da terceira trilogia é uma obra essencial para a saudável geekidão do jovem milenial.

Fomos ao Sr. Joaquim e alugámos a edição especial do Batman V Superman. Tivemos que separar em duas partes, porque crianças não se deitam à meia noite e pais de família não estão em casa de dia. Partir um filme destes em duas partes acaba por ajudar à experiência porque primeiro despachamos logo a parte má. E depois no segundo dia já só temos que ver a parte muito má. A coisa mais positiva a apontar a este filme é que não é tão mau como o Man of Steel. Por outro lado todos os filmes são melhores que o Man of Steel, mesmo o Pretty Woman e o Jaws, the Revenge. Bolas, até o Superman IV, The Quest for Piss é melhor.

BvS é um filme disconexo, uma sucessão de cenas que não encaixam. Sente-se frio e sem alma, vazio de conteúdo, como uma esposa troféu que tem uma vida de luxo e ao adormecer só pensa em suicidar-se por ter acabado de chupar novamente uma pila frouxa. A edição não é suficientemente competente para fazer uma obra com coesão, as cenas nem parecem todas do mesmo filme. Se calhar nem são. Dá a sensação que a DC tinha 6 filmes merdosos da sua primeira fase do Universo CInematográfico, percebeu que era terrível e que nem para mostrar naquele canal só para cães servia. Fizeram um mashup num único filme e cagaram na continuidade, coesão e integridade estrututal (e narrativa). Aquela cena do Robin (será?) que é um sonho em que ele diz morreu virgem e o batman acorda em pânico porque não é bem verdade. Ele é que não se lembrava de onde vinham aquelas dores no rabo devido às drogas que o Batman lhe metia na Coca-Cola.

Talvez porque a DC queira acelerar o passo com o seu Universozinho Cinemático ou pura inépcia de Zack Snyder, esse farsolas. É como quando dás dinheiro a um adolescente para comprar livros para a escola e o passe do autocarro e o gajo torra o dinheiro todo em ganza e revistas porno. Não me vou alongar no Snyder, esse farsolas, porque já o fiz muitas vezes e duvido que haja alguém entre vocês capaz de honestamente dizer o inverso.

A narrativa é infantil. Dou apenas como exemplo três coisinhas que se interligam. O plano de Lex Luthor é aquele habitual super complicado plano que vive das coincidências e da capacidade de prever o futuro para funcionar, no esquema Blomfeld exageradamente complexo e rebuscado em meios e detalhe. A razão pela qual os heróis se chateiam, que é truque do vilão, é também infantil. “Isso não se faz, vais apanhar tautau. Quem pensas que és? Tens que ser controlado! Ai ai, vamos lá ver vamos lá ver…”, dizem os dois. E, para finalizar, a maneira como se tornam amigos. O superhomem chora e diz o nome da mãezinha. E o outro tem uma mãezinha com o mesmo nome. Quase todas as pessoas da minha idade têm mães chamadas Maria. A próxima vez que estiver a apanhar no focinho porque me esqueci de pagar a quotas do União de Coimbra posso sempre tentar dizer “Maria, Maria…”. Se não funcionar continuo a inventar nomes. A minha mãe nem sequer se chama Maria. Mas bom, se o Snyder acha que chega, é porque chega.

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Fiquei surpreendido com o Batfleck. Eu não suporto o Ben Affleck, é ódio visceral. Às vezes explica-se porque tem um mau papel outras vezes é mesmo aquela focinheiro que me dá vontade de comprar um saco de boxe. Não esperava ver um Batman tão desiquilibrado e agressivo. Aquela insanidade e violência descontrolada excitou-me um pouco. Porque pela primeira vez o Batman cumpria o seu papel na perfeição. E que soube sempre manter a gaita nas calças, longe das câmaras, o que vai contra a natureza de Ben Affleck. A Supermulher é interessante, belas carnes, boa pose, carinha laroca, pouco roupinha, nota-se que está habituada ao frio. No entanto completamente fora de contexto, assim como aquele email a explicar que existem mais super pessoas que super poderes. Hey, e aquele Aquaman? Era capaz de jurar que também lá vi o CagalhãoDeCãoMan, num plano de 3 frames, agarrado à sola de sapato do Bruce Wayne.

E com isto chegamos ao fim, para mais um festival do pixel. A única coisa que aliviava a dor era aquele violoncelo eléctrico no tema musical da Wonder Woman. O Lex Luthor desnecessariamente insano abanava os braços e ria à Dr. Evil, apesar de haver sempre um cartaz nas mãos de Snyder que dizia “Não és o Joker, calma!”. Toda a sequência da criação da besta má que destroi cidades é também como aqueles livros do professor Pardal em que ele vai á sucata e faz duas máquinas do tempo e um foguete que atravessa a galáxia e regressa antes de jantar. E na próxima história começa tudo do principio ignorando completamente a destruição e as falhas permanentes do contínuo espaço-temporal criado pela brincadeira do Prof. Pardal. Aqui é igual, o Super-Homem morre mas depois na Comic Con apareceu em todos os posters e trailers do League of Justice.

E durante toda a duração do filme tentei ao máximo meter-me na pele de um fanboy ou de uma criança que aceita tudo. O puto não gostou muito do filme, muita coisa lá enfiada em simultâneo, muita pergunta. E eu é que levei com essa sessão de esclarecimentos.

No fim vimos o The Flinstones. Adorou e já o voltou a ver 2 vezes. Yaba Daba Du.

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The Legend of Tarzan (2016) – Ciclo “Mete-se Agosto”

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E aqueles filmes que só queremos ver porque a actriz teu um rico par de mamas? Esse impulso hormonal não é exclusivo do sexo masculino, uma vez que as mulheres também têm esses guilty pleasures. A diferença, como em tudo, é que as mulheres os fazem de modo subtil enquanto os homens se sentam no cinema com as calças nos tornozelos e mãos a friccionar a gaita. Um efeito deste impulso feminino foi eu ter sido arrastado pela minha esposa para ver o Tarzan porque o gajo é, e passo a citar, “muita bom”.

Diminuído na minha masculinidade e inseguro com a minha barriguinha lá fui. Sob protesto, note-se! Já não seria a primeira vez que caía nesta esparrela, também com o Tarzan. Já nos anos 80 tive que gramar vezes sem conta o Greystoke: The Legend of Tarzan, Lord of the Apes porque a minha irmã tinha uma paixoneta de adolescente pelo Christopher Lambert. E eu lembro-me perfeitamente de ter ido à estreia desse filme, com uns 12 anos, à espera de ver um Tarzan como nos desenhos animados e ter apanhado com um seca para adultos que nunca mais acabava. E é certo que aqui os abdominais Skarsgård transformam também este Tarzan num clássico instantâneo das senhoras ou de homens que peguem em mais paus que os Pauliteiros de Miranda.

Este novo Tarzan é uma daquelas sequelas em que o primeiro filme (não existente) é colocado dentro deste sob a forma de 35% de flashbacks. Uma tendência recente que tem vindo a ganhar seguidores, especialmente útil para criar Universos Cinemáticos instantâneos. E nele encontramos Lord coiso (o nome dele inglês de Tarzan do qual não me lembro agora) depois de ser encontrado, retornado e assimilado pela cultura inglesa, onde tomou o lugar de Lord no parlamento. É agora um nobre completamente ocidentalizado e respeitado. Dá-se um evento que o obriga a voltar a África com a esposa. Começa assim o Tarzan Two, Electric Boogaloo.

De volta a África, Tarzan revisita todos os pontos chave da sua infância de modo a que esses flashbacks possam fluir livremente pelo ecrã. Questiono-me se haverá alguém que não conheça a origem do Tarzan. Além de ferirem mortalmente o ritmo do filme, estes flashbacks ainda o tornam mais longo. O que não seria mau, se esse tempo fosse equilibrado e bem utilizado. Como se gasta tanto em flashback o final é apressado e sem o requinte necessário para ser apreciado como satisfatório.

No seguimento do êxito de Jungle Book, também se quis enriquecer o ambiente da selva com CGI, que se provou ser um desastre total. Não há suavidade na fusão e nota-se o plastificado falso e irreal sempre que é forte em CGI. A interacção entre humanos e animais nunca consegue transmitir uma verdadeira sensação de ameaça, parece realidade aumentada saída do Pokemon Go (Ape Edition).

E com isto tudo Tarzan volta para o Congo, salva o continente africano do domínio do homem branco, todos ficam felizes, acaba o filme ao por do sol com amor e uma cabana, sorrisos exagerados com o novo algoritmo informático da Disney para manipular expressões faciais, créditos finais, a minha mulher toda contente porque viu o Alexander Skarsgård em cuecas todo musculado aos saltos como um macaco e eu ligeiramente enraivecido por ter pago para ver uma interpretação em typecast de Cristoph Waltz e Samuel L. Jackson a fazer o único papel que sabe, himself.

Como espectáculo de circo falta-lhe aquele arrojo extra que o torne único ou, pelo menos, diferente. Como filme falta-lhe a profundidade emocional e uma narrativa aprimorada e coerente que nos faça torcer pelos heróis, que nos ajude a identificar com as causas dos personagens. Tenho andado nos últimos dias a tentar convencer-me que é um filme inócuo, um filme boff, que não aquece nem arrefece, que serve para passar o tempo. A tentar enganar-me, porque o filme é abaixo disso, é mau. Assim como está, nem o deixo ver ao meu cão. Pode ferir-se emocionalmente e um psicólogo de cães anda pela hora da morte.

E com isto acaba esta fantasia molhada de justiça e equilibrio de poderes em África. Estivemos ali duas horas a torcer pelos povos de África, pelo fim do domínio violento e apocalíptico do homem branco, pela possibilidade de dar os povos de África uma qualidade de vida que lhes permita ter esperança num mundo melhor. Saímos do cinema com a nossa esposa, que usa diamantes africanos, vamos beber um chocolate quente de cacau vilipendiado a tribos a troco de quase nada, passeamos pelas avenidas feitas com mão de obra escrava e financiada com riqueza roubadas ao continente Africano, tentamos evitar os bairros dos imigrantes angolanos e cabo-verdianos e vamos para casa ter pena dos pretinhos, coitadinhos, que ninguém gosta deles e se todas as pessoas fossem como nós o mundo seria perfeito. “Talvez ofereça uma bengala com cabo de marfim ao meu avô”, penso antes de adormecer, “no filme tinham tão bom aspecto”.

Deixo o episódio de Nas Nalgas do Mandarim onde foi abordada a temática das adaptações live action saca-euros da Disney e uma previsão acertada de como seria este Tarzan.

Ciclo “Mete-se Agosto” Um homem tem que fazer ocasionais sacrifícios por amor. Não estou a falar em deixar a esposa pisar-nos escroto com sapatos de salto alto, manter o sorriso parvo ao levar com um strapon no cu ou ter acompanhá-la nas compras. Falo em pequenas cedências, as pequenas coisas nos fazem sair da bolha de conforto. Esta semana iniciei um pequeno ciclo com a esposa, numa altura mais descansada em que as crianças passam uns dias com os avós. Um ciclo de comédias românticas, vejam lá! Resolvi dar-lhe o nome “Mete-se Agosto”.

Arrival (2016)

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Arrival (2016)

“Onde estavas aquando da chegada dos extra-terrestres?” será a pergunta mais feita pelos terráqueos naquele intervalo de 3 semanas que separa a chegada dos nossos amigos do espaço sideral e a obliteração total da vida na Terra. E como nos preparamos para isto? Será possível executar essa preparação sem parecer um tolinho da conspiração? É na continuação deste simulacro conceptual que Denis Villeneuve assenta o seu exercício imaginado materializado em filme semi-blockbuster de época baixa Arrival.

Ao se fazer um filme em regime de blockbuster ou implantado à sombra do fantasma do box-office é preciso fazer um conjunto de compromissos. Não querendo alhear o público que é o ganha pão de toda a indústria mundial de cinema, um talentoso autor amarrado às grilhetas das convenções contabilísticas terá sempre que ceder em termos narrativos. Simplificar e amarrar a estrutura a uma norma reconhecível por todos, tanto o Dr. Silva da mediateca de estudos cirílicos da Associação dos Amigos da Minerologia Holística como o Celso Perneta que vai ao cinema com o dinheiro que lhe sobra de um dia a estacionar carros e a vender bicos a 2 euros a funcionários das Finanças. Ora aqui o Denis faz um belo trabalho, dentro de limites bastante cerrados consegue criar um obra em camadas que pode agradar a uma miríade de cinéfilos.

Arrival conta-nos a história de uma especialista em linguagem puxada para resolver um enigma linguístico aquando da chegada de inteligência extraterrestre ao nosso planeta. Uma metódica doutora das línguas com complexos problemas pessoais no seu regaço. E assim começa o filme, neste negro registo que vai impor o tom geral do filme. Trabalhar incansavelmente para expiar os demónios que nos atormentam na noite. Este tom que eu, confesso, critiquei ao intervalo. E fi-lo por o ter achado forçado, por ter sido uma falácia narrativa para impor com artificialismos o ritmo do filme e manter aquele constante piano pendente sobre as cabeças dos nossos amados personagens. Muito me enganei nesta asserção, porque quando chega o filme ao fim percebo que era propositado, que Denis me enrolou bem enroladinho nos meus preconceitos. E esta é apenas uma das muitas qualidade deste magnífico filme sobre o qual não se deve filosofar em demasia para quem ainda o não viu.

Em termos de ritmo e distribuição dos pontos narrativos estamos bem servidos, como tão bem sabem aqueles que seguem o realizador. O tempo demorado a construir as cenas, o investimento na viagem em detrimento do destino, uma espécie cinema tântrico de gama de entrada. Os silêncios a falar mais alto que os discursos, até porque os diálogos entre humanos não são nada de excepcional, talvez uma técnica para nos fazer preferir o silêncio e a linguagem não verbal. Não sei, este filme é todo em roda desta temática da linguagem e isto é malta que pensa muito nos seus filmes, que usa técnicas subliminares para nos mostrar coisas. Talvez seja tudo propositado, talvez sejam falácias nos nossos cérebros que associam coisas inassociaveis. Talvez seja coincidência, como quando sobrepomos música a um video e por magia parece que tudo combina.

Villeneuve trata do tema com mestria. Estamos cansados de ver o acompanhamento global das invasões extraterrestres, com presidentes, lideres do mundo, belicismo e militares a distribuir fogo de artificio, o impacto no povo humano, os monges do tibete a ver TV CRT à luz da vela, as crianças de Africa a sorrir num TV ligada a uma bateria de carro, os franceses ao lado da torre Eiffel e os americanos a mamar cerveja mijoca nos bares. O herói do povo, homem comum, que representa todos aqueles a quem a esperança abandonou e num rasgo da mais pura improbabilidade acaba por ser o herói de toda a civilização, responsável por guardar intacta por mais uns anitos a herança da humanidade. Até à sequela, pelo menos. Mas Villeneuve não abraça o todo, foca a sua investida num nicho específico, embrulhado em drama pessoal, tão poderoso como a eminente extinção. Usando o tema da comunicação para comunicar, algo que parece senso comum mas não é.

O fim é um propósito maior que a própria vida, a invocar um queixo caído de estupefação que só não acontece porque, convenhamos, foi um bocado martelado. Ainda assim engenhoso mesmo não sendo original.

Muitas são as influências de 2001, Contact ou Interstellar. Neste caso sem os malabarismos flamboiantes de Nolan com o típico “Hey, vejam o que eu sei fazer”. Denis senta-se na cadeira de realizador num canto escuro e deixa o trama dar-se, à procura do amor, sempre o malfadado amor, o sentido de toda a busca humana. Um maestro cuja missão é coordenar esta infinidade de variáveis e não ir à TV falar da sua genialidade usando óculos de um patrocinador.

Não é de todo livre de pecados. Não fiquei fã do casting por ter recorrido a actores que invocam para um imaginário de typecasting e demasiado cansaço visual. Ver o Arqueiro dos Avengers a ser um físico teórico que passa duas horas a apanhar bonés e depois desbloqueia o grosso do enigma enquanto outros dormem nuns despachados 2 minutos de “despachar isto que se faz tarde” ou Forest Whitaker as himself. Além disso toda a gente espera que apareça o Superman quando a Lois Lane está em sarilhos com aliens.  Há também lá no meio um narração atabalhoada como que a resumir em 5 expositórios minutos aquela horita que ficou no chão da sala de montagem. O fim é fatela, foleiro. Não falo da conclusão do filme, é a cena que o encerra. Não é mau, não é horrível ou sequer mal feito. É broeiro, azeiteiro, sopeiro, uma recompensa para quem vai ao cinema receber o docinho do final feliz, aquela réstia de RomCom que nos mete as fêmeas receptivas ao coito e os machos um passo mais perto de aceitar a fatalidade dos compromissos. O amor tudo conquista, fim.

Só vi o trailer depois do filme e, com mil macacos, parece o autocarro do spoiler. Evitem ver este trailer, evitem ver todos os trailers. Vamos deixar de alimentar esta gonorreia cinematográfica que é o trailer de bandeja que explica tudo. Carago, é uma praga pior que aqueles macacos nos templos budistas.

“Onde estavas aquando da chegada dos extra-terrestres?”  A nossa heroína estava a dar uma aula onde explicava a importância da unicidade da língua portuguesa na literatura mundial quando apareceram os Extraterrestres. Porque há um limite para tudo.

Rogue One (2016) em formato FAQ

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No ano passado estreou o capítulo VII do Star Wars, que vinha tão embezuntado em hype que não havia rabo que não estivesse pronto para o acomodar sem reservas. Uma banhada, o soft-reboot como agora lhe chamam. Como se este inglesismo viesse atenuar o facto de que se tratava de um remake. Encapotado, mas remake. Estava tudo tão esfomeado que caiu como comida fora de validade num lar de sem-abrigo. Podem ler tudo aqui.

Um ano depois chega a entremeada, as fatias de “vejam isto enquanto não acabamos o outro”, numa cadência que se espera repetir-se até ao final dos tempos. Mesmo quando, lá para o final do século, as coisas começarem a esmorecer e apareçam títulos como “Star Wars: Missão em Miami”, “Agora é que são elas, o lado rosa da Força” ou a trilogia das origens do tocador de harpa daquela banda do bar de Mos Eisley.

Já falei sobre isto com o confrade Miguel numa flash review que fizemos no podcast Nas Nalgas do Mandarim, que também pode ser ouvida no Youtube. Aqui.

E na semana que se seguiu recebi bastantes mensagens, mesmo de pessoas que não conhecia. Mensagens relacionadas com a review do Rogue One e, pasmem-se, maioritariamente de pessoas que discordavam. Porque o Rogue One é a melhor coisa que saiu do Star Wars desde… Aparentemente desde sempre. Expliquei-me, fui cordial. Não mandei ninguém para o caralho porque a Força está comigo e eu estou com ela. Parece-me simples e até vou estruturar a review sob a forma de FAQ. Frequently Asked Questions, para quem viveu debaixo de uma pedra até ontem.

É assim tão importante que os personagens sejam expressivos e desenvolvidos? Que se conheçam de modo aprofundado as suas motivações? Mas os protagonistas são tão bonitos…

De facto é importante que assim seja. Já todos sabemos qual a missão e qual a sua importância. Sabemos que é perigosa. Quem escreveu o argumento e idealizou o filme acha que é suficiente. Não é. Precisamos de nos identificar com os personagens e as suas causas, com as suas dores. Precisamos de perceber naquelas duas horas o que os move, o que os faz acreditar. Precisamos que nos transmitam isso. Não os queremos apáticos nem autistas. É preciso que eles nos convençam a ir também e vibrar com as suas aventuras. Se é para seguir zombificados de cena em cena podem acontecer efeitos secundários nefastos.

Ai sim? Como por exemplo?

Olha, a simpatia cair do lado do Império. Isso aconteceu-me. E acho que o realizador percebeu isso. Não de mim em concreto, mas de toda a gente. Tenho quase a certeza que alguns refilmagens consistiram em meter mais Evil no Evil Empire. Uma vez que a parte “rebelião” do filme saiu tão frouxa e deslavada, havia pessoas a achar que o Império estava apenas a fazer o seu trabalho e aqueles vagabundos piolhosos que nem para trabalhar nos carrosséis servem eram o Isis do espaço, a estragar a vida a quem trabalha. Vagabundos do Rendimento Social de Inserção a destruir propriedade alheia. Desesperados para acabar com o império para depois poderem vender ganza livremente nos planetas da orla da galáxia, tocar djambé para o seu cão chamado Anarca e abdicar do direito de tomar banho.

Mas esperavas o quê, caralho?

Esperava um filme standalone diferente dos outros. Noutro tom, porque não é um episódio a sério. É um bastardo sem direito à introdução clássica em amarelo rolante a desaparecer num ponto do espaço. Queria uma espécie de filme de guerra, como aqueles de missões de roubo de documentação da segunda guerra mundial. Mais sujo e violento. Uma mistura de Saving Private Ryan com Black Hawk Down. Umas batalhas ao estilo do Longest Day, pessoas a morrer, nós em lágrimas porque aquele que tanto amámos pereceu em glória. Aqui aconteceu apenas com o Robot, o único com motivações, backstory e desenvolvimento de personagem. E é um robot. Obviamente que isto seria apenas o meu desejo, o filme nunca poderia ser assim.

Porquê?

Porque a Lucasfilms foi comprada pela Disney. E a Disney quer vender bilhetes a crianças, por isso lança o filme nas férias do Natal. E se entrarem crianças, a partir dos 6, terá que ser uma coisa limpinha e inócua. Com a inocência de um sabonete líquido. Apesar de ser admissível que as crianças não compreendam completamente a história, não podem ficar chocados com grafismos mais agressivos. Nada de mamas, sexo e decapitações. Nem umas calças de napa embaladas a vácuo na Felicity Jones e ângulos baixos do seu posterior. Daí só haver gore com um robot, porque é um robot.

Se as crianças não vão perceber o filme, porque as deixam entrar?

Porque um bilhete é um bilhete e esta indústria vive do box office. Vão ali absorver aquele universo, ver as naves e os bonecos. Depois, como o filme é estrategicamente colocado na altura em que os pais se sentem mais generosos, só têm que fazer uma birra porque querem comprar o boneco do filme. Classic Disney.

Achas mesmo? O único boneco nessas condições é o robot que diz piadas e parece o Sheldon do Big Bang Theory.

Só podes estar a gozar, amigo imaginário que na realidade sou eu também a falar comigo próprio. A Disney empacotou no filme todas as referências possíveis do universo Star Wars. Como os criadores de cavalos os queimam com aquele ferro da ganadaria, a Disney enfarda lá tudo o que seja boneco para vender. Desnecessariamente. O R2D2 e o 3CPO aparecem, para as pessoas dizerem “Ohhh, que querido. Vou já comprar um.”. A princesa Leia de totós, as naves todas e mais algumas. Os Imperial Walkers são porreiros e os fãs adoram. Toca a encher tudo de Imperial Walkers. E nem me metam a falar do Darth Vader.

Fala do Darth Vader. Achas que foi desnecessário também?

Acho que seria um bom equilíbrio deixá-lo apenas na cena final. Que é boa. A melhor. Em conteúdo e em simbologia. Porque faz a ponte para o New Hope. As cenas intermédias são masturbatórias e mercantilistas. De certeza que foi também tudo feito nas refilmagens. Principalmente a cena em que se conhece o castelo do Vader em Mordor. Um ripoff do castelo do Skeletor, a coisa mais desconfortável do mundo. Porque se me tivessem cortado as mãos e os pés e me tivessem deixado a assar num planeta de lava enquanto a minha esposa grávida agonizava e morria noutro canto da galáxia, era mesmo assim que queria a minha casa. Num planeta de lava, rodeada de lava, com umas cascata de lava que vai embocar num lago de lava. Ainda por cima estamos a falar de uma pessoa com problemas respiratórios. Pobre senhor. Para quê? Para vender o castelo do Darth Vader da Lego e meter meia internet a discutir as opções estéticas daquela construção e o porquê de ter uma péssima iluminação.

Mas.. mas… o filme é puro Star Wars, cheira a Star Wars, é o sonho molhado de qualquer fanboy.

Não discordo. É, de facto, visualmente competente. É. Tem todos os elementos que reconhecemos do Star Wars original. As naves, as fardas, os interiores, os sistemas electromecânicos, os ecrãs de fósforo verde, as vestimentas sci-fi dos anos 60 e aposto que por baixo daquelas roupas ninguém se depila em excesso. Isto é porreiro do ponto de vista da nostalgia. Eu sou nostálgico por natureza, sei apreciar estas coisas. No entanto já vamos num dezena de filmes Star Wars e continuamos a orbitar os acontecimentos do New Hope e The Empire Strikes Back. Que na realidade são aquilo que é bom em Star Wars, é daqui que emana todo o carisma deste modo de vida, que é disto que se trata actualmente. Não há arrojo para avançar para outros problemas geoestratégicos da Galáxia. Estas entremeadas spinófficas vão continuar a mungir o leite sagrado da nostalgia e os novos episódios vão reviver a saga original sob a forma do tal “soft reboot”.

O que propões então?

Nada. Quem sou eu para propor o que quer que seja. Sei que existe um rico universo no universo expandido, com sagas emocionantes que nada têm a ver com o Dallas do clã Skywalker, que poderiam ser aproveitadas. Não conheço, mas há pessoas em quem confiava que me alugassem um filme que me falam disso. Nos jogos, comics e até livros a sério, de ler, sem bonecos. Iria por aí. Só que a Disney não vai fazer isso, não é dinheiro fácil e garantido. Seria partir para o desconhecido, o frio vácuo do box office imprevisto. E esta malta gosta muito do seu dinheiro. “Dinheiro, dinheiro, dinheiro!”, como diria do Doutor Porkshop do Toy Story.

E como ficamos?

[encolhe os ombros em resignação, desembrulha a sua sandes mista sem manteiga e olha de modo vazio para o infinito. pondera as possibilidades do trânsito de final da tarde e toma uma decisão que será a mesma decisão que todos irão tomar. o fiambre parece ligeiramente fora de validade. continua a mastigar de modo mais intenso, porque sabe que vai ser um stress ficar preso no trânsito e chegar tarde à escola para levar os miúdos para casa. suspira. pensa que seria tudo mais fácil se tivessem já inventado portais de teletransportação. volta ao trabalho aceitando pacificamente as dores e o sofrimento da vida.]

Mermaid (2016), metamorfose ao luar

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Acto 1 – Chinese Demagogy

O Português tentava dormir, anestesiado por um jetlag eterno, quando alguém bate à porta. Manteve-se deitado e tentou combater alguma ansiedade natural para quem está sozinho do outro lado do mundo. “Num hotel não haverá concerteza perigo”, pensou. “Deve ser engano.”. Virou-se para o outro lado, submerso em almofadas numa fofura artificial que só as cadeias internacionais de hotéis sabem fazer. A criar a sensação de que estamos em casa em qualquer local do planeta. Não em casa, Casa. Naquela casa genérica que é o conforto da segurança, a capacidade de manter o ritmo cardíaco numa estável apatia. A mesma razão pela qual as pessoas costumam argumentar que comer no McDonalds é a opção mais segura quando se viaja para o estrangeiro. Pode ser merda liofilizada e infectada a gorduras trans, aminoácidos sintéticos e cancros fulminantes, mas tem sempre o mesmo sabor em todo o lado. Aqui, na China, também este pacato cidadão do mundo procurava aconchego nestas almofadas fofas com cheiro a benzeno disfarçado com perfume genérico. Batem novamente à porta, apressadamente. Um ralhete percussionado, como um “levanta-te seu merdas” da batucada. Desta vez sentiu-se um merdas e levantou-se. Dirigiu-se apreensivo à entrada. Um membro das máfias russas ou um assassino do Partido podia ter discordado da sua visão para o futuro dos botões de pulso e preparava-se para lhe limpar o sebo com uma corda de guitarra ou uma sandes de polónio 210. Podia ser da recepção, com um recibo. Os chineses às vezes não têm a mesma noção de prioridade que nós, os tipos do ocidente. Há casas de banho onde se caga em comunidade, sem paredes separadoras. A malta senta-se, caga, fala de negócios, lotaria, novelas e sugestões de especialistas para ver essa verruga nos tomates, limpa o cu e vai-se embora. Garantem especialistas que se poupa imenso em papel e água. Também em tempo e recursos financeiros na construção das infraestruturas de cagar, as chamadas “casas de banho”. As fábricas adoram. Abriu a porta e não havia ninguém. Saiu para o infinito corredor alcatifado e nada. Um quilómetro para cada lado, a perfeita geometria arquitectónica a embocar num ponto. Nada. Onde teria ido o artista? Certamente não era possível correr suficientemente rápido para desaparecer assim. “Pfff”, voltou irritado para dentro. Ao fechar a porta reparou num envelope no chão. Abriu e tinha um postal com umas moças semi-nuas a publicitar uma gama de pneus para SUV cujo logotipo era bastante similar à Pirelli. “Chineses e mamas grandes”, pensou, “algo que não se vê todos os dias por aqui.” Virou o postal e lia-se em letras sublinhadas: VAI VER A SEREIA. A PARTIR DE AMANHÃ HÁ LUGARES DISPONÍVEIS.

Que merda é esta?”, pensou assustado. Andava há 3 semanas para ver o Mermaid de Stephen Chow nos cinemas e estava sempre esgotado. Um fenómeno curioso que não compreendia. Ninguém compreendia. A imprensa ocidental estava louca com isto. As bilheteiras vazias, os corredores vazios. As sessões esgotadas. Com semanas de antecedência. Uma vez encontrou duas pessoas que saiam de uma sessão do Mermaid. Tentou perguntar-lhes o que estava a acontecer. “Solly no speak engrish”. Coisa bizarra, riam de modo ausente. Nunca mais se esqueceu deste encontrou, passou a lembrá-lo como o Momento X.

Acto 2: À meia noite, ao luar

O que significaria isto? Ver a Sereia a partir de amanhã? De repente as pessoas deixaram de ter interesse? Já há vagas? Como uma mente de colmeia chinesa que teria deixado de permitir ir ver o filme? Uma época religiosa que proibia que se vissem filmes de sereias? “Opá, aqui há gato…”, pensava para si próprio enquanto acabava uns restos de pato com sabor a coelho numa cidade onde os gatos têm vindo a desaparecer e ninguém sabe porquê. Olhava pela janela do hotel e a única coisa que se via na noite escura da Shenzhen eram uma firmes nádegas suadas apertadas contra os vidros num 67ª andar do hotel em frente.

No dia seguinte, após uma ronda de decepcionantes apresentações sistemas modulares de botão de pulso do Sec XXI, voltou a tentar comprar bilhetes para ver o Mermaid de Stephen Chow. Aproveitou uma pausa de pequeno almoço para comprar online. Teve cuidado redobrado por causa do tradutor automático, raramente funciona bem. Da última vez que tentou comprar bilhete para o último Star Trek num dos mais recentes cinemas 4D em cabines isoladas com sofás reclináveis e jantar, acabou com reserva no clube restrito Bambu Africano com encontro marcado com um etíope chamado Dong Kong cuja indumentária era inexistente.

Estavam todos os lugares disponíveis. Comprou 3 bilhetes para ficar à vontade. Apareceu meia hora antes, ninguém. Sala vazia. À hora do filme, vazia. Porreiro, pensou. Pegou no balde e começou a inumana função de mastigar aquele imenso fardo de pipocas. O filme chega ao intervalo e começa a duvidar de tudo. O filme estava a ser terrível, desde as performances aos efeitos especiais. Tudo bem que o Stephen Chow é o chamado ponei que só faz um truque, mas isto é regredir. Bastava que usasse a mesma fórmula. Muito mau. E os efeitos especiais estavam a ser dignos da publicidade da Coca Cola nos Jogos Olímpicos de Seul. Além disso há sérios problemas como… Estes seus pensamentos de qualidade de humano superior são interrompidos por alguém que está sentado na sala ao lado. Um asiático idoso com cara marota. Fuma abundantemente um cachimbo que deita cheiro a camião diesel dos anos 70. Encardido, como se se tivesse atirado de uma carrinha em andamento para um penhasco de modo a escapar à morte certa. Cheirava a urina e morte. “Olá”, disse sorrindo. “Bem vindo ao cinema. Bela merda, hein?”. Continuava a sorrir de modo maroto e a falar português perfeito. Bem, não se podia dizer que fosse perfeito, era um sotaque alfacinha. Percebia-se, vá! “Já percebeu o que está a acontecer?” Ria e fumava. A abundante espiral de fumo negro e de aspecto radioactivo não parecia incomodar os detectores de incêndio. E este era o fumo que lhe saía dos pés, imagine-se o que vinha do cachimbo.

Depois de um momento de choque, o velhinho fedorento continuou. “As vendas de bilhetes em milhares de salas pelo país foi um esquema de lavagem de dinheiro por parte das máfias. Compram salas atrás de salas, pagam em dinheiro. O dinheiro entra no circuito da sala que normalmente é propriedade dessas mesmas máfias. Por isso é que foi o filme mais visto de sempre na China e na realidade quase ninguém lhe meteu a vista em cima. O próprio filme foi financiado pela Máfia e o Stephen Chow nem se preocupou. Não valia a pena. Estava pago. O acordo com a máfia cobria a produção, o acordo com Netflix outro tanto e o contrato para três filmes no futuro. Sem necessidade de correr riscos, fez uma enervante merda atópica e repugnante para fanboys. E esses ainda não o viram e já dizem que é bom, o melhor.” Lambeu os lábios com uma língua bifurcada e um som viperino. Uma explosão de fumo fez desaparecer quase por completo o velho asiático. Uma cauda reptilia foi a única coisa que se viu a desaparecer entre os bancos. O português sentia o coração explodir. “Que… merda… é esta?!…” pensou pausadamente, nos momentos em que o cérebro era oxigenado. Acalmou e virou-se para o ecrã incapaz de se abstrair do que tinha acabado de acontecer. Expirou ruidosamente ar pulmonar. A forte cadência da respiração parecia ser insuficiente para oxigenar o sangue. O peito ardia e a garganta estava cada vez mais seca. Temia morrer de ataque cardíaco e a cara o velho não lhe saía da cabeça. Acalmou finalmente. A sala fica escura. Silêncio.

Inclusivamente, numa das salas…” voltou o velho mal cheiroso a falar do outro lado. Rodou a cabeça com tanta força que estalou o pescoço. “...houve uma orgia organizada por uns executivos da Disney Europa que tinham o tal fetiche de foder no cinema. Como toda a gente, suponho!” Indiferente ao olhar de pânico do Português, o velhinho puxou demoradamente pelo cachimbo e continuou a debitar informação de modo unilateral. Por uns momentos o cérebro do português bloqueou e só o via a mexer os lábios em câmara lenta. As faces iam distorcendo, revelando uma cara que de lagarto humanóide. Depois os contornos da face rodavam em caleidoscópio e eram 100 expressões de pessoas diferente até voltar ao lagarto. Com peles descaídas e picos venenosos a sair das costas. “…e acabam por iludir o público que nunca chega ver o verdadeiro cinema na vida. Um destes realizadores iranianos… “. Aperta-lhe o braço com força deixando uma marca de uma mão animalesca, com garras afiadas e membranas interdigitais. Cheirava a carne queimada e o seu braço largava fumo, como um cavalo marcado a ferros. Começou a perder os sentidos. Ainda conseguiu apanhar “… Tisary McMelnoid havia feito uma obra prima que foi destruída pelos média. Os mesmos que, sabendo desta tramoia do Chow e da Sereia, optaram por ignorar. Trabalham todos para o mesmo. Sabemos todos qual é, não é? Não preciso de dizer nomes. Adiante. Nessa noite, untado em margarina…” Perdeu os sentidos.

Acto 3: O lado negro é a aurora do tempo

Acordou deitado entre as cadeiras no escuro. O filme ainda não tinha terminado. Levantou-se e viu os últimos 10 minutos. Coisa terrível. Má representação, aspecto amador, miséria total. Não ficou arrependido de ter adormecido. O filme acabou, rolaram os créditos e lembrou-se do pesadelo que lhe havia consumido três quartos de hora de filme. Que coisa bizarra, terá sido alguma coisa que comeu? Ia a sair e sentiu um ardor no braço. Puxou a camisa e tinha lá a marca queimada da mão do réptil. Ainda cheirava carne assada. Saiu meio atordoado, completamente imerso num pânico que lhe fazia sentir a cabeça a rebentar. Cambaleante. Encostou-se a um pilar e tentou relaxar. Olhou em frente. Dois cavalheiros iam a conversar. Chineses que parecia ter já visto. Foi aí que se viu a si próprio ao fundo do corredor. “Mas que merda esta?”. Escondeu-se atrás do pilar e viu o desenrolar da cena por um espelho na parede. Ele próprio a perguntar aos chineses o que estava a acontecer e eles riam em escárnio e respondiam “Solly no speak engrish”. Respirou fundo. “Meus Deus, o Momento X!”.

Seguiu-se a si próprio e reconheceu o que estava a acontecer. Foi o caminho que fez de volta naquele dia que foi ao cinema e estava tudo esgotado. As mesmas interacções, as mesmas pessoas. Aquele rapaz que chorava com uma camisola dos Angry Birds, uma performance de rua em que um Vietnamita tocava viola e interpretava Creep dos Radiohead que soava a “Ai má Clip, ai má hindú”. Seguiu-se a si próprio até ao hotel. Ficou na rua à espera. Esperou pela noite e tentou entrar. O cartão do hotel funcionou. Ninguém reparou que entrou uma segunda vez. Para os chineses somos todos iguais, pensou. Subiu ao seu andar. Chegado ao corredor sentiu que deslizava ondulante, como uma serpente. Ao chegar à porta sentia-se bem, sentia-se sem medos, capaz de enfrentar o mundo. Confiante, um novo homem. Olhou orgulhosamente para o ventre e corpo de réptil. Soltava gosma transparente que desaparecia de imediato das superfícies. Olhou para a porta do seu próprio quarto, onde estaria provavelmente a dormir lá dentro e percebeu o propósito de tudo.

Pegou num panfleto de um espectáculo de porno-vaudeville que lhe deram com o bilhete. Tirou também um envelope e uma caneta. Escreveu “VAI VER A SEREIA. A PARTIR DE AMANHÃ HÁ LUGARES DISPONÍVEIS. “ e bateu à porta.

Colossal (2016)

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Não há nada pior na vida que um gajo sentir-se um bardamerdas. Um gajo perceber que é um resto de uma bosta de cão agarrado à sola desta gigantesca bota cósmica onde viajamos pelo espaço/tempo. Talvez nem um resto de bosta sejamos, reavaliando a metáfora será mais apropriado dizer que somos um electrão de um átomo de carbono de uma molécula que compõe esse minúsculo pedaço de bosta. Como desejamos ser um pedaço de bosta a sério ou, sonhando muito alto, uma bosta inteira numa sola da bota celestial na qual estamos agarrados a viajar pelo espaço/tempo. Para que a humanidade possa sentir-se melhor existe a ficção e dentro da ficção o cinema. E dentro do cinema aquilo de que vos vou falar a seguir.

Há cerca de um ano chamaram-me a atenção para um trailer com a indicação “acho que vais gostar”. Começou pastelosamente com a Anna Hathaway a ser uma trintona solteirona e a ser também uma adorável trapalhona. Olhei para o calendário e não era primeiro de Abril. Continuei. De repente a adorável trapalhona com a feminilidade maximizada (estava em início de gravidez, curvinhas encantadoras) vê nas notícias que um Robot gigante saído diretamente do UltraMan apareceu na baixa de Seul e causou níveis consideráveis de destruição. Mais! A Anna reparou, depois de um conjunto de elaboradas peripécias, que o robot era controlado por si. A adorável trapalhona de feminilidade maximizada controlava um robot gigante assassino no outro lado no planeta. E no fim a cereja no topo do bolo, realizado por  Nacho Vigalondo. Mamilos erectos…

Nacho quê? Nacho Vigalondo é o realizador de um dos meus filmes preferidos de ficção científica de viagens no tempo, o Cronocrimenes. Conhecido também pelo titulo internacional de Time Crimes. “Ok”, pensei, “estou a bordo”.

E voltamos então ao parágrafo que aqui nos trouxe. Esta obra de ficção fala-nos da infeliz sensação de sermos merdas sem valor. Deprimidos ao perceber que a nossa função no grande esquemas das coisas é perpetuar o nosso código genético para maximizar a infecção humana no planeta Terra. Parasitas controlados por uma força primordial e pré-programada que nos transcende. Merdas sem valor incapazes de controlar o próprio destino. Com ilusão de que há ordem. Ignorar o caos no centro da sala. Parasitas e merdas sem valor que de repente representam o Player 1 no jogo da humanidade. Anna Hathaway é a ponta de lança das nossas fantasias de grandeza. E as nossas intimas fantasias são um excelente combustível para a ficção e aqui está um belo exemplo disso.

A personagem de Anna vê-se numa situação miserável de vulnerabilidade social e psicológica. Volta à terra que a viu crescer onde é ajudada por um velho amigo, um rapazola que a ama mas que ela empurrou para a temível e irreversível “zona da amizade”. Daí até ao robot gigante em Seul vai um passinho e as coisas complicam-se quando o Player 2 entra na arena.

Vigalongo faz aqui um excelente exercício de projecção de personalidades, transformando a baixa de Seul num sofá da psicanálise  e atropelando meio país no processo. Anna Hathaway faz o que tem a fazer para o seu papel brilhar mas é de Jason Sudeikis que vem uma rica surpresa. Não falo mais disto para não spoilar.

Para quem não interpreta isto como uma materialização de personalidade ou uma exteriorização de traumas sob a forma de objetivação do subconsciente, temos também um ângulo bastante interessante do mundo dos Robot Gigantes da linhagem das séries japonesas. É o filme que Judd Apatow desajaria fazer e em que Seth Rogen mataria para entrar. O estilo deles em bom.

É um bom exemplo de filme cujo objectivo é o personagem superar os seus medos e só é ligeiramente arruinado na fase final por excesso de explicação. Vigalonga achou necessário dar um background lógico à insanidade surreal a que estamos a assistir e o filme não precisava disso. Seria uma boa cena apagada do DVD, vá.





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